Introdução
Nos últimos tempos os processadores chegaram a um ponto onde se tornou praticamente impossível aumentar a sua frequência, de modo a que a solução foi passar para as arquitecturas multi-core. No entanto, nesta abordagem os ganhos não são tão lineares como podem parecer, i.e., duplicar o número de núcleos não significa duplicar a velocidade das aplicações. Isto porque se a aplicação não for projectada para este tipo de arquitectura, só irá fazer uso de um dos núcleos.
Neste artigo será abordada uma forma de responder a esta situação (não necessariamente a melhor). Assim, serão abordadas algumas system calls disponíveis em ambientes UNIX, para criação e manutenção de processos, bem como para a comunicação entre eles. Será usada a linguagem C.
Processos e Threads
Um processo é aquilo que executa um conjunto de instruções associadas a um programa (programa este que pode ter vários processos a si associados), tendo cada um uma zona de memória independente. Cada processo possui também um identificador único (o process identification ou simplesmente pid). Por sua vez, cada processo pode ser constituído por várias threads (linhas de execução), que partilham as variáveis globais e a heap, mas têm uma stack independente. Ter vários processos e/ou threads em execução em simultâneo é um requisito essencial para que se tire partido de um processador multi-core. O facto de partilharem recursos torna as threads mais leves do que os processos, permitindo também uma comunicação mais simples entre elas. Por estes motivos, a utilização de várias threads é habitualmente a melhor opção para programação concorrente; no entanto, não será esse o tema abordado neste artigo, centrando-se em vez disso nos processos.
Criação e Manutenção de Processos
As principais system calls disponíveis para a criação e manipulação de processos são as seguintes:
fork
cria um processo filho;wait
espera que um processo termine;getpid
devolve o pid de um processo;exit
termina o processo actual.
Para as usar serão necessárias as bibliotecas unistd.h
, sys/types.h
, stdlib.h
e sys/wait.h
. De seguida analisar-se-á cada uma das system calls indicadas (excepto a exit
, que é do conhecimento geral da maioria dos programadores).
fork
pid_t fork(void);
Esta system call cria um processo filho (em relação ao que a invoca). Todo o código que estiver depois da sua invocação passará a ser executado por duas entidades. É claro que na maior parte dos casos o que se pretende é que cada um dos processos execute uma determinada parte do código, não tendo grande utilidade a execução do código em duplicado. Mas como é que se indica o é que deve ser feito por um processo e pelo outro?
A resposta está no valor devolvido pelo fork. Este devolve para o processo que o invocou (o processo pai) o valor correspondente ao pid do novo processo (do processo filho), enquanto que ao novo processo devolve o valor 0. Assim, verificando este valor pode-se controlar aquilo que será executado pelo processo pai e o que é para o processo filho (isto é valido para os casos mais simples, quando se cria mais do que um processo filho as coisas podem não ser assim tão fáceis). De seguida apresenta-se um pequeno exemplo.
int main(void) { pid_t pid=fork(); if(pid==0) { puts("Processo filho"); } else { puts("Processo pai"); } puts("Fim"); return 0; }
Ao executar este código a mensagem Fim
será mostrada duas vezes, enquanto que as outras duas só são mostradas uma vez cada. Experimentando executar o programa várias vezes, certamente será possível ver que a ordem pela qual as mensagens são mostradas não é sempre igual. Este é um comportamento típico das aplicações concorrentes.
wait
pid_t wait(int *status);
Esta system call permite esperar pela finalização de um processo filho. Quando isso acontecer, é colocada em status
informação relativa à forma como o processo terminou. Devolve o pid do processo que terminou, a menos que ocorra um erro, devolvendo -1 nesse caso.
De seguida mostra-se um exemplo de utilização desta system call.
int main(void) { pid_t pid=fork(); if(pid==0) { puts("Processo filho arrancou..."); sleep(10); puts("Processo filho terminou."); } else { puts("Processo pai"); if(pid!=wait(NULL)) { puts("Erro!!!"); } puts("Fim"); } return 0; }
Certamente a mensagem Fim
só irá aparecer depois da mensagem Processo filho terminou.
. Se se retirar a linha correspondente à função wait
, o mais provável é que o programa encerre antes da mensagem Processo filho terminou.
ser mostrada.
De notar que, caso fossem criados vários processos filho, esta função só espera por um deles (para vários será necessário executar várias vezes a função, como seria de esperar). Mais do que isso, esta função não permite controlar qual o processo filho pelo qual se vai esperar. Para isso existe uma variante desta system call, a waitpid
(pid_t waitpid(pid_t wpid, int *status, int options);
). Esta já permite a indicação do processo de que se está à espera (através do parâmetro wpid
), assim como algumas opções adicionais que não são relevantes para este artigo.
Mais um pequeno exemplo de utilização:
int main(void) { pid_t pid1, pid2; pid1=fork(); if(pid1==0) { puts("Processo filho 1 arrancou..."); sleep(4); puts("Processo filho 1 terminou."); } else { pid2=fork(); if(pid2==0){ puts("Processo filho 2 arrancou..."); sleep(1); puts("Processo filho 2 terminou."); } else { puts("Processo pai"); waitpid(pid1, NULL, 0); puts("Fim"); } } return 0; }
Tal como está, só com o fim do primeiro processo filho a ser criado é que aparece a mensagem Fim
. Se se tivesse usado a função wait
(ou colocado o valor -1
no primeiro parâmetro da função waitpid
), mal um dos processos filho terminasse, o pai também terminaria.
getpid
pid_t getpid(void);
Esta system call permite saber o pid do processo que está a correr. Existe também uma variante que devolve o pid do processo que lançou o processo actual (ou seja, o pid do processo pai): pid_t getppid(void);
.
Um exemplo da sua utilização:
int main(void) { pid_t pid; pid=fork(); if(pid==0) { printf("Processo filho - pid: %d / pai: %d\n", getpid(), getppid()); } else { printf("Processo pai - pid: %d / filho: %d\n", getpid(), pid); wait(NULL); } return 0; }
Ambos os programas deverão mostrar os mesmos valores, apenas com a ordem trocada. Agora pode-se experimentar remover a chamada ao wait
(linha 9), e executar o programa várias vezes. É provável que em algumas delas, a função getppid
devolva o valor 1. Isto aconteceria no caso da chamada à função ocorrer depois do processo pai já ter terminado, e nestas situações, o processo pai passa a ser o processo 1.
Por fim apresenta-se um exemplo onde se mostra uma possível utilização das funções aqui abordadas. Pretende-se procurar um determinado valor num vector de inteiros, e caso este exista, determinar a posição no vector em que esse mesmo valor se encontra. O vector terá 200 posições, e será inicializado com uma sequência de inteiros de 1 a 200. Vão criar-se 4 processos para efectuar a procura e devolver a posição onde o elemento está para o processo principal. O valor a procurar será o 90.
int main() { pid_t pid; int vals[200]; int i, j, n=90, status; for(i=0; i<200; i++) { vals[i]=i+1; } for(i=0; i<4; i++) { pid=fork(); if(pid==0) { for(j=50*i; j<50*(i+1); j++) { if(vals[j]==n) { exit(j); } } exit(255); } } for(i=0; i<4; i++) { wait(&status); if(WEXITSTATUS(status)!=255) { printf("O valor esta na posicao: %d\n", WEXITSTATUS(status)); } } return 0; }
Aqui já não se usa apenas o resultado do fork
para saber qual é o processo que está a correr. Recorre-se também ao valor que a variável i possui num determinado momento. De notar também que os processos filho são encerrados ainda dentro do if
, algo que é bastante frequente neste tipo de problemas, pois permite um maior controlo sob aquilo que é executado por cada processo.
Neste exemplo foi usada a macro WEXITSTATUS
, que extrai o valor devolvido por um processo, a partir do valor dado pela função wait
.
Este método possui algumas limitações. Isto porque o valor devolvido pelo exit
não pode ser superior a 255. Assim, cada processo poderia, no máximo, pesquisar 255 posições. No entanto, existem formas de comunicação entre processos mais funcionais, uma das quais será abordada na próxima secção.
Comunicação Entre Processos com Pipes
As pipes são uma forma de comunicação entre processos bastante usada em UNIX, que muitos utilizadores estão habituados a ver numa shell. Agora mostrar-se-á como usar este mecanismo em conjunto com as restantes system calls aqui apresentadas.
Uma pipe funciona como um ficheiro. Na sua criação, obtêm-se dois descritores, um onde se podem escrever dados, outro de onde se podem ler dados. No entanto, um processo só pode ler, e o outro só pode escrever, i.e., a informação só circula num sentido. Para a criar, usa-se a função int pipe(int filedes[2]);
. Em filedes[0]
é colocado o descritor aberto em modo de leitura, e em filedes[1]
o descritor aberto em modo de escrita (em cada processo, só se usa um deles, como foi abordado atrás, razão pela qual se deve fechar o descritor que não vai ser usado).
Vai então resolver-se um problema semelhante ao anteriormente apresentado, mas agora com um vector de 10000 posições, com valores de 0 a 999 (repetidos várias vezes), procurando pelo valor 0.
int main() { pid_t pid; int vals[10000]; int i, j, n=0; int filho_pai[2]; if(pipe(filho_pai)==-1) { exit(1); } for(i=0; i<10000; i++) { vals[i]=i%1000; } for(i=0; i<4; i++) { pid=fork(); if(pid==0) { close(filho_pai[0]); for(j=2500*i; j<2500*(i+1); j++) { if(vals[j]==n) write(filho_pai[1], &j, sizeof(int)); } close(filho_pai[1]); exit(0); } } close(filho_pai[1]); for(i=0; i<4; i++) { wait(NULL); } while(read(filho_pai[0], &j, sizeof(int))) { printf("O valor esta na posicao: %d\n", j); } close(filho_pai[0]); return 0; }
O método é semelhante ao usado anteriormente. A única diferença é mesmo a forma como os valores são devolvidos ao processo pai. Como se pode ver, as pipes já não têm limitações com o tamanho da informação, podendo também ser utilizadas por vários processos em simultâneo. Neste exemplo, foram usadas para enviar informações dos processos filho para o processo pai, mas também podem ser usadas em sentido inverso (é claro que no caso de haver vários processos a ler numa mesma pipe, é necessário algum cuidado).
Conclusão
Ao longo deste texto, foram abordados alguns dos mecanismos básicos disponíveis em ambientes UNIX que permitem construir aplicações concorrentes, tendo sido também apresentados alguns exemplos (simples) de aplicação. Estes mecanismos possuem ainda outra grande utilidade, a execução de aplicações externas, assunto que, no entanto, sai fora do tema deste texto. Sugere-se o estudo das system calls da família exec
para que estiver interessado no assunto. Informações mais aprofundadas sobres as funções aqui tratadas, podem ser facilmente encontradas nas respectivas man pages.
Referências
- J. P. Oliveira. Apontamentos de Sistemas Operativos I. Universidade do Minho, 2005.
- W. R. Stevens, S. A. Rago. Advanced Programming in the UNIX Environment. 2ª edição, 2005.